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Artigo – Ordem, segurança e justiça

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31.10.2009 Opinião
As sociedades de hoje andam disfuncionais, anômicas até. Essas sementes de caos geram por reação uma espécie de mania da ordem e da segurança, como se fossem um fim em si, e como se tal ideia fixa não fosse já sinal de desordem profunda, logo, de doença do tecido social.
Aplicada às relações sociais, essa fixação pode fazer precisamente esquecer o que poderia propiciar a verdadeira ordem, ou seja: a Justiça. Dizia Pessoa: ?A ordem é nas sociedades o que a saúde é no indivíduo. Não é uma cousa: é um estado. Resulta do bom funcionamento do organismo, não é esse bom funcionamento. Na sociedade (…) quando aparece a desordem, a sociedade sã procura logo não manter a ordem, que pode ser provisória ou aparente, mas atacar o mal que produziu a desordem. A exclusiva preocupação da ordem é um morfinismo social?.
A tentativa de repor ordem artificialmente só resultará em ignorar as pessoas, impondo-lhes situações que só contribuem, ao nível das águas profundas do social, e das mais profundas ainda do imaginário, para perturbar ainda mais a ordem. Só a ordem natural das coisas é ordem; as ordens artificiais, desde logo as utopias, são sempre perigosas. A maior prudência tem de acompanhar as soluções que não sigam o ?natural? ? por muito que esta expressão possa ter ocultado e abrigue ainda discursos legitimadores… O que, obviamente, nada tem de conformismo com a desordem instituída, desde logo a econômica.
Ordem não é Law and order (visão ultrapassada no terreno penal e criminológico, mas que ainda cativa certos sensacionalistas). Esta procura um reforço da segurança pela repressão, e terá na ideia de ?tolerância zero? um dos seus cumes, o que não deixará quiçá de estar na gênese do securitarismo. Com toda uma outra dimensão e altura, desde logo teórica, está a ideia de ordenamento jurídico, que começa com grande proximidade com a teorização da instituição (como em Santi Romano, em 1917), e se prolonga, de forma mais crítica (numa articulação norma ? ordenamento) com Bobbio. Mas mesmo em Bobbio a ideia de ordenamento não deixa de remeter para uma perspectiva algo construtivista do mundo jurídico: ?Todo o ordenamento jurídico, unitário e tendencialmente (se não efetivamente) sistemático, pretende também ser completo.? (Teoria dell?ordinamento giuridico).
Mas uma coisa é a própria plenitude do sistema jurídico, e outra a artificialidade de uma ordem, no limite a mão dura da lei com boas intenções anti-criminosas. Mas consequências nem sempre desejadas.
A segurança é inegavelmente um valor jurídico. Ele é mesmo a forma mais primária de justiça. Mas devemos aspirar a mais. Não só ordem, não só segurança, mas justiça. A Justiça é que é a verdadeira ordem e a garantia da real segurança. Com ordem ou segurança apenas ninguém pode ficar realmente seguro.
Paulo Ferreira da Cunha – Professor catedrático de Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto