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Um abrigo

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Opinião 30.07.2010
Vi os olhos deles. Senti seu perfume, seu cheiro de criança. Brinquei com um mais alegrinho. Peguei um neném no colo. Vi uma papando tudo, mais cedo que os outros, porque já estava com fome. Contei quantos eram: 14 crianças, 14 vidas começando, 14 pessoas com direito à dignidade humana.
O abrigo é acolhedor, na essência da palavra. Bem cuidado, limpo, decorado com motivos infantis, cheio de pessoas alegres e carinhosas. Pessoas simples e afetivas, cuidadoras. Na varanda, brinquedos de todas as ordens espalhados e meninos sentados empurrando carinhos, movendo bonequinhos, vivendo sonhos. No quarto dos bebês, bebês dormindo, na inocência profunda de uma soneca matinal. Lúdico.
Ao ver aquelas crianças senti o quanto cada uma delas poderia encher de vida uma família. Encher a casa de alegria, de função de criança, daquela trabalheira prazerosa que os filhos dão. Correria, bagunça, escola, manhã, mamadeira, remédio, estudo, carinho, sorriso…cuidado, enfim. Todas as 14 crianças que estavam naquele abrigo poderiam colorir de afeto a vida dos adultos que se dispusessem a amá-las. Fossem estes adultos seus pais biológicos ou pais por adoção, mas de qualquer forma ou modo, pais de amor.
Apesar de ser aquele abrigo digno deste nome, ao contrário do que acontece com a maioria das instituições de acolhimento que eu conheço – que mais parecem depósitos de almoxarifados, nos quais as coisas guardadas são crianças ? sua excepcional condição não é suficiente para os pequenos que lá se encontram. Não terão eles o acompanhamento individualizado que só uma família pode dar, nem o olhar de carinho de um pai ou de uma mãe, que traz aquele sentimento de especialidade que se tem quando se pertence a um núcleo íntimo de proteção e carinho.
O mais trágico desta visita foi saber que há crianças ali com mais de três anos de institucionalização.
Três longos anos sem que fossem reintegrados à sua família de origem, nem disponibilizados para adoção. Eu me pergunto se é ético permitir que uma criança fique sendo desrespeitada em seu direito à convivência familiar durante tanto tempo para que ? supostamente ? se aguarde a decisão de sua família biológica de tê-la de volta. Na prática é isto que ocorre. Se espera indefinidamente pela recuperação de uma mãe biológica, por esta estar no que se chama tecnicamente de ?vulnerabilidade social?, enquanto o mofo do desapego se junta ao coração de uma criança inocente.
A falta de coragem e dedicação às crianças institucionalizadas por parte das autoridades públicas ? incluindo o Ministério Público e a Magistratura ? sempre vêm acompanhada de um discurso socialmente adequado, que dá conta de necessidade de políticas públicas para fortalecimento da rede de proteção à infância, que se funcionasse, evitaria a institucionalização das crianças. Apesar de ter uma premissa verdadeira, esta alegação não exime de responsabilidade o Promotor de Justiça de examinar cada caso de criança institucionalizada e propor a ação destituição do poder familiar que poderá liberar a criança para adoção quando a criança não possa em tempo curto ser reintegrada a seu lar original. Em tempo curto porque o impacto do abandono é proporcional ao período sem família. Quando mais o tempo passar, mais enraizados serão os traumas da solidão, mais destroçada ficará a autoestima da criança.
Proponho uma experiência aos que têm o dever de garantir que as crianças vivam em família: institucionalize seu filho por um dia. Deixe-o num abrigo. Se a idéia parece um disparate, não sendo plausível que o seu filho passe um único dia sem família, cuide daquela criança que está há três anos lá. Agora.