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Tudo se transforma: a saga de um reciclável a partir do Fórum Clóvis Beviláqua

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Jornalista Karine Holanda

Na segunda matéria da série “11 Anos Reciclando Vidas”, acompanhe de uma perspectiva diferente o caminho percorrido por um documento até o descarte e como o Judiciário realiza esse trabalho, que é feito com responsabilidade socioambiental, e contribui para transformar a vida de 22 pessoas que trabalham com reciclagem.

Existo desde 2010. Nasci exatamente igual a todos: uma folha em branco prestes a escrever uma história. Após um tempo guardado numa embalagem, vi a luz da fotocopiadora e tornei-me uma petição inicial. Eu era um documento importante. Até fui levado ao Rio de Janeiro, vejam só. Quem imaginaria isso nos dias de hoje, quando se pode compartilhar um PDF em questão de segundos? Mas, naquela época, papéis viajantes eram algo comum.

No Fórum Clóvis Beviláqua, órgão do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), passeava pelos corredores em carrinhos de compras, junto com outras pilhas e mais pilhas de papel. Passei por várias mãos e vários departamentos – parecia que todos precisavam de mim. Até que um dia essa movimentação toda parou. O processo foi encerrado e por muito tempo fiquei arquivado em uma sala no subsolo do Fórum. Ninguém vinha me ver, já não servia mais pra nada. Podia sentir o cheiro de mofo em minhas fibras de celulose.

Com o tempo, percebi que chegavam cada vez menos folhas para me fazer companhia naquele labirinto de estantes. O Judiciário cearense estava se digitalizando e não precisava mais de nós. Naquela altura, desejava ter-me juntado a outros que se transformaram em blocos de rascunho. Pelo menos serviria pra alguma coisa.

DESCARTE SUSTENTÁVEL

Um belo dia, ouvi que ia ser descartado. Não gostei dessa palavra. Imaginava que meu último destino seria padecer em um aterro sanitário, até me desintegrar por completo. Mas meu medo se transformou em alegria: descobri que poderia fazer parte de uma política de reciclagem. Eu serei doado a uma associação cadastrada pelo tribunal, que transforma lixo em insumos de valor e, assim, gerar emprego e renda para diversas famílias de bairros carentes!

Além disso, ainda vou contribuir para a preservação do meio ambiente e otimização dos espaços, atendendo ao Plano de Logística Sustentável do TJCE e aos objetivos da Agenda 2030, um esforço global promovido pela Organização das Nações Unidas por um mundo melhor.

Descobri que posso ser útil de novo. Tenho potencial para ser reaproveitado como folha de jornal, caderno, sacola e até ser transformado em peça de artesanato. Não apenas eu posso ter uma nova vida, mas vários iguais a mim. O projeto de descarte sustentável do Fórum de Fortaleza existe desde 2012 e, de junho de 2021 a abril de 2023, já entregou para doação mais de 30 toneladas de papel, papelão, plásticos, vidros e metais. Alguns desses materiais não são repassados a indústrias, mas aproveitados na própria comunidade.

RECOLHIMENTO

Mesmo durante a pandemia de Covid-19, o trabalho de descarte não foi suspenso. A Seção de Manutenção e Zeladoria do Fórum é a responsável direta por manter esse projeto, recolhendo, armazenando e entregando os resíduos à associação de catadores. Mas, antes de seguir viagem, há uma rotina e um tratamento que devem ser seguidos. Todas as terças-feiras, os auxiliares de serviços gerais recolhem uma grande quantidade de papel A4, papelão e plástico, por solicitação das unidades do Fórum. O trabalho não é simples: o prédio tem 75 mil m², por onde circulam 5 mil pessoas por dia. Isso é quase uma pequena cidade. Após o esforço de recolhimento, o material é levado a um contêiner, onde fica depositado até a associação fazer o resgate.

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GESTÃO DOCUMENTAL

O meu caso é um pouco diferente. Por causa do meu conteúdo, não posso ser descartado de pronto. Faço parte de uma política de gestão documental, conduzida pela Comissão Permanente de Avaliação Documental, composta por magistrados e servidores. Essa política define cada passo a ser seguido para o descarte de documentos legais, de acordo com diretrizes do Conselho Nacional de Justiça.

Em agosto de 2022, o Judiciário cearense deu início ao projeto de descarte de petições físicas, que estavam armazenadas no Serviço de Protocolo desde 2009. Foram liberadas, de uma só vez, quase 6 mil toneladas de documentação. Toda essa movimentação precisou ser divulgada por meio de edital, para garantir a transparência do ato e a possibilidade de resgate.

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Os documentos foram separados por lotes, identificados e conferidos por uma equipe da Apada – Associação dos Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos. O próximo passo consiste na fragmentação das peças para garantir o sigilo das informações. Mas, graças à digitalização, minha memória não se apagará por completo, pois fará parte de um banco de dados para futuras consultas. Garantida a integridade do meu conteúdo, minha estrutura física seguirá para novos rumos. Mal posso esperar! Sou a verdadeira expressão do: “nada se perde, tudo se transforma”.

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