Testemunha do juízo
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- 13-12-2010
12.12.2010 opinião
” O proativismo processual (…) não tem o abono, mas sim a repulsa, do sistema acusatório”
Causa alguma surpresa que o art. 209 do CPP, que faculta ao juiz, quando julgar necessário, ouvir testemunhas, além das indicadas pelas partes, tenha passado incólume à reforma do Processo Penal empreendida pela Lei 11.690, de 9 e julho de 2008, que teve nítida inspiração na ideia de depurar o procedimento penal, dele se excluindo o protagonismo judicial, no que diz respeito às tarefas da imputação, que cabem – exclusivamente – ao representante do Ministério Público, compondo, aliás, uma das suas mais árduas e relevantes funções.
A continuação daquela previsão normativa, dentro do sistema processual penal, é evidentemente anacrônica, com o devido respeito, porquanto avulta manifesto o seu descompasso com a ideologia que agora o preside, nutrida, como se disse, nas pautas do sistema acusatório, que em regra não admite ao juiz do crime desempenhar atuação supletiva da acusação. É claro que se pode verificar esse descompasso simplesmente se cotejando o art. 209 do CPP com os princípios processuais penais vigentes, mas esse mesmo resultado se obtém com igual segurança, quando se constata que a Lei 11.690/08 alterou a redação do art. 212 do CPP, para assegurar que as partes formulem perguntas diretamente às testemunhas, excluindo, destarte, a intermediação do Juiz nessas formulações, como antes se admitia. A ouvida das testemunhas, aliás, obedece a uma sequência ou ordem pré-estabelecida legalmente (art. 400 do CPP), que não pode ser quebrada, sob a pena de nulidade relativa do ato, salvo convindo as partes, como anota pertinentemente o ilustre prof. Guilherme de Souza Nucci (CPP Comentado, São Paulo, RT, 2008, p. 721); a jurisprudência do egrégio STJ orienta que se anula a audiência de ouvida de testemunhas, quando se infringe aquela sequência (HC 153.140-MG, rel. min. Felix Fischer, DJe 13.09.10; HC 121.216-DF, rel. min. Jorge Mussi, DJe 01.06.09; HC 143.557-DF, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 01.02.10).
Parece evidente que essa regra não poderá jamais ser cumprida a contento, no caso das chamadas testemunhas do juízo, porquanto se verifica a total impossibilidade de se saber previamente, justo para se determinar aquela referida sequência, ser ela da acusação ou da defesa; diante desse impasse, a melhor orientação é a de que não seja admitida a ouvida de testemunha judicial, até para se preservar a inteireza do sistema instrutório, que não se compadece mais com a antiga forma presidencialista, de tão longa tradição no Direito brasileiro, hoje pertencente à história das ideias processuais penais.
O proativismo processual, que vez por outra teimosamente ainda reponta em decisões e atitudes de muitos magistrados criminais, não tem o abono, mas sim a repulsa, do sistema acusatório e pode gerar – como frequentemente gera – situações capazes de nulificar os atos do processo, com visível prejuízo para as partes e para a própria atividade punitiva, que se deve exercer dentro dos mais seguros padrões de legalidade; mas se deve registrar que refrear a tendência ao uso da violência institucional não é tarefa que se cumpra sem muito esforço, porque subjaz tenazmente a ideia de que é lícito repelir a violência com violência (vi vim repellere licet), fazendo a lei ceder, para justificar a violência do Estado como uma resposta necessária à agressão às suas instituições, como já observara Norberto Bobbio, mas condenando com veemência a máxima segundo a qual tem razão quem vence (As Ideologias, UnB, 1999, p. 98).
Em não raras oportunidades o proativismo judicial poderá comprometer até mesmo a neutralidade do juiz do crime, levando-o a comportamentos próprios da acusação ou fazendo-o atuar de modo a suprir as suas deficiências ou omissões; mas convém ter presente que no Processo Penal as nulidades espreitam nos bastidores dos cenários processuais, à maneira de Quasímodo, o inquietante e terrível personagem de Victor Hugo (1802-1885) em Notre Dame de Paris (1831), deformado, cego de um olho, coxo e corcunda, disposto a cair sobre os atores e assassina-los a punhaladas; o grotesco dessa história fantástica é reportado em O Corcunda de Notre Dame, animação de 1996, com Demi Moore no papel de Esmeralda, a linda cigana por quem o cura da catedral se apaixona e cujo rapto serve de pretexto para a execução do infeliz Quasímodo.
NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO
ministro do Superior Tribunal de Justiça