Os caminhos da justiça brasileira, segundo Asfor Rocha.
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- 09-11-2009
08.11.2009
O espaço que o Judiciário tem ocupado na vida do país encontra correspondência na devassa que a sociedade tem feito na Justiça. Se até poucos anos atrás o presidente do Supremo Tribunal Federal era menos conhecido que o pior jogador do pior time da primeira divisão, hoje há sessões da TV Justiça que concorrem com a novela das oito.
O amadurecimento do país e o interminável aprendizado logo vai mostrar a importância do Superior Tribunal de Justiça, a casa onde se decide as regras do cotidiano dos brasileiros. Assim como as construções faraônicas chamam mais atenção que obras de saneamento básico, por serem subterrâneas, o STJ constrói o certo e o errado nas relações entre o marido e a mulher, a empresa e o consumidor, o fisco e o contribuinte, o inquilino e o senhorio, o banco e o correntista, o segurado e a seguradora. Nada que concorra, no noticiário, com as denúncias dos mensalões petista e tucano. Mas, certamente, muito mais importante para o brasileiro.
A entrevista aqui transcrita mostra o pensamento de um juiz: o presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha. Nordestino habilidoso, conhecido pelo carinho que dedica à sua família e pela capacidade de solucionar problemas complexos, é pacífico e cordato. Mas o homem vira uma fera quando se duvida da boa fé do juiz brasileiro. Irritação maior ele só mostra quando topa com dois tipos de juízes, definidos por ele: o desonesto e o covarde.
Na conversa franca que se segue, o cearense Cesar Asfor Rocha enfrentou as questões mais delicadas e nervosas como quem toma um café na esquina. Por que a Justiça sempre foi acusada de ser patronal e governista? Ele responde: ora, porque sempre foi mesmo. Mas com uma ressalva. Não apenas a Justiça, mas também a sociedade mostrava e impunha essa vocação. Isso não é mais assim, garante ele. Se o juiz é vulnerável à pressão da opinião pública? “Mais até do que se imagina”, afirma. E isso não é necessariamente ruim, acrescenta.
Com frontalidade, enfrenta outra polêmica: que chances têm as pessoas demonizadas pela imprensa, como Daniel Dantas, o casal Nardoni ou o juiz Nicolau. “A consciência do magistrado”, reponde ele, que admite o conluio entre a sede desmesurada de Justiça da população, a imprensa e o dueto composto pela polícia e Ministério Público ? principais fornecedores de notícias de impacto, mas nem sempre verdadeiras. “O magistrado covarde é tão nefasto quanto um magistrado desonesto”, reage o ministro. Com a mesma coragem, Asfor Rocha atribui a Gilmar Mendes, seu colega no STF, o mérito de ter estancado a escalada irracional que colocava delegados inflamados, procuradores e juízes de primeiro grau no governo do país.
Sem se poupar de azedumes periféricos, Asfor Rocha entrega nesta entrevista os tribunais que resistem aos tempos modernos e às sumulas do STJ: Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais, coadjuvados pelo Rio de Janeiro. Uma prática nada desprezível para a cultura nacional. Os tribunais gastam cerca de R$ 20 milhões por ano só para mandar, pelo correio, os recursos para o STJ. São Paulo gasta perto de R$ 5 milhões. A digitalização dos processos paulistas (que o próprio STJ se dispõe a bancar) custaria menos de R$ 960 mil. Restam poucas dúvidas nessa discussão.
Leia a entrevista
ConJur ? O economista americano Albert Fishlow defende a tese de que a estabilidade política e econômica do Brasil, não foi conduzida pelos políticos, mas pelo Judiciário e pelo Ministério Público. O advogado Oscar Vilhena entende que o desenvolvimento econômico, político e ambiental brasileiro está nas mãos dos operadores do Direito, que são as pessoas que constroem as regras que possibilitam essa evolução. Como é que o senhor vê essas interpretações?
Asfor Rocha ? Não é só o Judiciário brasileiro que está em alta, é o Judiciário no mundo. Já tivemos o século do Executivo e o século do Legislativo. Este é o século do Judiciário. No caso brasileiro, o Judiciário está sendo mais notado, porque ele era muito calado. Mesmo aqueles que falavam eram muito tímidos. Além de estarmos neste instante de vivência do século do Judiciário, a Justiça está se mostrando e despertando o interesse da imprensa. Desde que o chamado consenso de Washington cuidou de aprimorar a Justiça na crença de dar mais previsibilidade em termos de definições de teses jurídicas, notamos a presença do Judiciário definindo grandes questões. Não se pode cogitar de desenvolvimento que decorra da movimentação de capitais estrangeiros sem que se dê tranqüilidade jurídica à sociedade.
ConJur ? No Brasil, para cada dois habitantes corresponde um processo em tramitação na Justiça. Em outros países, a proporção é dessa ordem?
Asfor Rocha ? Não, não é assim. Nós tínhamos uma demanda reprimida que explodiu com a redemocratização e com a Constituição de 1988, por dois aspectos. Primeiro, porque a Constituição de 88 reconheceu muitos direitos que antes eram sonegados ao cidadão e à coletividade. Segundo, porque ela tirou o medo que as pessoas tinham de litigar. O patrão antes inibia o empregado de entrar com a reclamação trabalhista. Hoje, o empregado não tem mais medo. O contribuinte não tem mais medo do fisco, o devedor não tem mais medo do credor.
ConJur ? Não é porque o brasileiro é um litigioso nato?
Asfor Rocha ? Não, não é por isso. É próprio do momento histórico que estamos vivendo. Temos essas duas razões: aumento de direitos da cidadania e a própria consciência desses direitos de cidadania. Essa explosão nos assusta por um lado, porque sobrecarrega a nós magistrados, mas por outro nos conforta, porque é o estuário próprio para compor conflitos em uma sociedade democrática.
ConJur ? O senhor falou do século do Judiciário. O Brasil e o Judiciário estão preparados para entrar nesse século? Nossas escolas, por exemplo, preparam bons juízes?
Asfor Rocha ? Temos faculdades deficientes, mas temos excelentes faculdades de Direito também. O que ocorre é que ninguém percebe que o Judiciário brasileiro é um dos mais bem estruturados do mundo pelas garantias que os magistrados têm. O juiz brasileiro tem prerrogativas que nenhum juiz do mundo tem. O que ele não tem ainda é preparo para a convivência. E por isso, muitas vezes, ele não é compreendido. Por exemplo, é correto que um jovem recém saído da faculdade, mesmo com algum tempo de experiência forense, possa julgar? Ele estaria já amadurecido para decidir sobre a vida, liberdade, honra, e sobre o patrimônio das pessoas? Então tem certos aspectos que estão sendo hoje objeto de críticas. Não só pela sociedade, mas pela própria magistratura.
ConJur ? O homem público está sendo demonizado no Brasil. O professor [J. J. Gomes] Canotilho tem conclamado a que se faça uma revisão dessa maneira de ver o homem público e os políticos em particular. O senhor, como juiz, sente uma certa aversão da opinião pública pelo homem público brasileiro?
Asfor Rocha ? Durante um longo período da nossa história o homem público se sentia imune a qualquer crítica. Isso evidentemente conduz a abusos. Esses desvios passaram a ser mais notados. Além disso, houve um aprimoramento muito grande da atividade pública no Brasil. A sociedade brasileira tem se aprimorado, porque ela estava muito distanciada do viés democrático que deveríamos ter há mais tempo. O que era a magistratura há dez anos? O Judiciário era um desconhecido, só aparecia nas páginas do Diário Oficial. Hoje, as questões mais relevantes da Justiça estão sendo levadas ao conhecimento do grande público, debatidas, criticadas e analisadas nas páginas dos jornais.
ConJur ? Que efeitos pode ter a relutância do Senado em cumprir uma ordem do STF ?
Asfor Rocha ? O episódio mostrou o amadurecimento das instituições. Foi resolvido logo. Mas é evidente que a projeção do episódio prejudicaria a imagem do país e, internamente, seria um péssimo exemplo em dois níveis. Porque se o Senado pode desobedecer ordem judicial, isso vai servir de argumento para quem quiser. E se é possível desobedecer o STF, o que dirá os demais tr