Novos Horizontes da Justiça Restaurativa: Projeto Custódia Restaurativa faz da liberdade a chance de um recomeço
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- 23-11-2023
O Tribunal de Justiça do Ceará deu início ao projeto “Custódia Restaurativa”, voltado para pessoas presas em flagrante e beneficiadas com a liberdade durante audiência de custódia na Comarca de Fortaleza. Na quarta matéria da série “Novos horizontes da Justiça Restaurativa”, saiba como funciona a iniciativa, que visa promover um espaço de reflexão e ressignificação das experiências pessoais dos envolvidos em delitos
Por Juliano de Medeiros
Por meio da audiência de custódia, toda pessoa presa em flagrante tem o direito de ser levada à presença de um juiz ou juíza, que decide pela necessidade de continuidade da prisão ou pela concessão de liberdade, com ou sem a imposição de medidas cautelares. É um instrumento essencial à garantia de direitos fundamentais, como a presunção de inocência e o devido processo legal. Com a chegada do projeto “Custódia Restaurativa”, realizado pelo Órgão Central de Macrogestão e Coordenação de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), junto à Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza, passa a ser também uma oportunidade para que os beneficiados com a liberdade provisória tenham a oportunidade de exercer outro direito, inerente a cada ser humano: o de recomeçar.
Utilizando a metodologia dos círculos de construção de paz, o projeto visa promover momentos de diálogo e reflexão, buscando desenvolver nos participantes a compreensão dos atos cometidos e senso de responsabilidade pelos danos causados. Atualmente estão formados três grupos, com até 15 participantes cada. O encaminhamento para o projeto é feito pelos juízes que atuam na Vara da Custódia, mas a adesão precisa ser consentida. O projeto tem início com um encontro preparatório individual para identificar pensamentos, sentimentos e necessidades, além de mapear as redes de apoio específicas a cada participante, para possíveis encaminhamentos. Esse primeiro contato é realizado em parceria com equipe técnica da Coordenadoria de Alternativas Penais, da Secretaria de Administração Penitenciária.
Já a segunda fase consiste na participação nos círculos de construção de paz, que busca levar os participantes a adquirir uma postura reflexiva, rever suas atitudes ante os demais e possibilitar o fortalecimento da rede pessoal e social. O primeiro desses encontros foi realizado no último dia 13 de novembro, na Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e do Egresso (Cispe), do Governo do Estado do Ceará.
O encontro foi acompanhado pela Assessoria de Comunicação do TJCE, com o cuidado do respeito ao sigilo dos participantes. No espaço, as cadeiras foram organizadas em círculo, onde todos conseguiam se ver. O formato favorece o diálogo e passa uma sensação de igualdade entre os presentes. Sentados nesta roda estavam os custodiados, além de juízas da Vara de Custódia da Capital e componentes do Órgão Central de Macrogestão e Coordenação de Justiça Restaurativa do TJCE.
A ideia do círculo restaurativo é proporcionar uma roda de diálogo. Permite a participação de qualquer pessoa que esteja envolvida em um conflito com o objetivo da resolução de problemas, reparação de danos, restauração de segurança e dignidade. Antes de qualquer manifestação, é realizado um acolhimento, em que as facilitadoras dão as boas-vindas a todos, agradecem pela participação e apresentam uma poesia. A escolhida, no primeiro encontro, foi “As Coisas Simples da Vida” de Bráulio Bessa: “Ser grato e compreender/Que um dia vamos morrer/E sentir na despedida/Que as coisas simples da vida/Nos dão forças pra viver”, diz o trecho final.
Em seguida, foi apresentado o bastão de fala. Um convite a usar a oportunidade de se expressar, deixando claro que aqueles que não desejarem falar podem ofertar o silêncio, passando o bastão adiante. O bastão, na ocasião, tratava-se de uma girafa de pelúcia. A girafa é o símbolo da Comunicação Não-Violenta por ser o animal que possui o maior coração dentre todos os mamíferos terrestres.
Todos os presentes têm igual oportunidade da fala ao receber o bastão. A cada giro do direito da fala, uma nova temática é proposta. Primeiramente, é feito um “check-in”, uma rodada inicial em que cada participante se apresenta e expõe como está se sentindo. Posteriormente, são discutidos valores importantes para cada um, e são debatidas também as diretrizes para os próximos encontros, determinando os acordos que todos se propõem a cumprir na condução do círculo, como respeito, pontualidade e honestidade.
A cada chance de fala, os participantes se sentem mais seguros para dividir suas próprias experiências e compartilhar suas vivências. Alguns mais confortáveis no discurso, outros mais monossilábicos. Cada um se expressa como prefere. Anseios, expectativa de mudança, esperança: todo tipo de sentimento surge nesta hora e pode ser dividido com o círculo. A palavra “liberdade” é citada em várias oportunidades.
Por fim, na cerimônia de fechamento, as facilitadoras agradecem as contribuições e encerram com uma música para refletir. A escolhida para este encontro inicial foi “Maior”, de Dani Black e Milton Nascimento: “Eu sou maior do que era antes/Estou melhor do que era ontem/Eu sou filho do mistério e do silêncio/Somente o tempo vai me revelar quem sou”, canta o refrão.
BALANÇO
Após o fim da reunião, alguns participantes dividiram suas impressões sobre esse primeiro contato com a Justiça Restaurativa. O custodiado Flávio (nome fictício) aprovou a experiência e, para ele, o círculo realmente tem um papel restaurador. “Eu achei muito bom. Deixa a gente mais leve. Permite a gente entrar em conexão com outras pessoas, dialogar mais. Às vezes a gente sai do Sistema Penitenciário um pouco diferente. Essa reunião ajuda numa ressocialização. Nós vamos nos entretendo com os colegas, conhecendo novas histórias, novos sentimentos, novas palavras”, reflete.
Para Augusto (nome fictício), a roda de conversa serviu também para verbalizar sentimentos que estavam guardados. “É um momento muito bom. Aqui nós podemos falar, desabafar. Quem está passando por esse momento, mesmo em liberdade provisória monitorada, acaba criando muitas angústias. Existe muito julgamento da sociedade. E aqui foi diferente. Um espaço em que nós tivemos a oportunidade de nos expressar, e que foi, de certa forma, terapêutico”, explica.
A juíza Flávia Setúbal, da Vara de Custódia e integrante do Órgão Central de Macrogestão, aprovou a contribuição de todos deste primeiro ciclo. Para a magistrada, este é o caminho para uma mudança na vida dos participantes. “Eu estou bastante esperançosa com esse projeto. É uma oportunidade realmente de restauração. Gostei muito do engajamento e desenvoltura deles neste círculo. Saio com confiança de que momentos como esse são essenciais para a ressocialização e, consequentemente, para um mundo melhor”.
Já a juíza Adriana da Cruz Dantas, titular da Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza, destacou a importância de acompanhamentos como esse após as audiências. “Fico bastante feliz e satisfeita de ter podido participar desse primeiro círculo. Esse é mais um projeto que vem somar à Custódia de Fortaleza no sentido de qualificar o atendimento e acompanhamento após a audiência. A dinâmica do círculo vai contribuir para que cada um deles repense suas condutas e também orientar para que eles consigam alcançar uma vida distante da criminalidade”.
Esse primeiro momento serve como um acolhimento, para que os membros se conheçam e se sintam mais confortáveis com a prática, de acordo com Erika Chaves, facilitadora do Núcleo Judicial de Justiça Restaurativa (Nujur), também apoiador do projeto. “Foi uma experiência muito rica. Algumas pessoas conseguiram falar um pouco de suas histórias e de suas percepções. Já observamos algumas reflexões importantes. Utilizamos perguntas reflexivas e buscamos construir um espaço de confiança entre eles”, finalizou.
Os próximos encontros da “Custódia Restaurativa” estão marcados para os meses de dezembro e janeiro com os mesmos custodiados.
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