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Novos horizontes da Justiça Restaurativa: A reflexão como ferramenta de rompimento com a violência

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Ao proporcionar um espaço seguro para reflexão e responsabilização, a Justiça Restaurativa busca transformar agressores em indivíduos conscientes, capazes de romper com padrões de violência e construir relacionamentos saudáveis. Na terceira matéria da série “Novos horizontes da Justiça restaurativa”, conheça a iniciativa que propõe um método alternativo para promover o rompimento e a prevenção da violência doméstica

Por Ulysses Sousa

Embora as vítimas sejam o foco principal das discussões sobre a violência contra a mulher, é igualmente importante trabalhar a recuperação dos agressores. Nesse contexto, a Justiça Restaurativa tem se mostrado uma abordagem promissora para ajudar homens acusados de violência doméstica a enfrentarem suas ações, assumirem responsabilidade e trabalharem em direção à mudança.

Bira (utilização apenas do primeiro nome para resguardo da identidade) integra um grupo de 25 homens que participam atualmente dos círculos restaurativos, destinados a pessoas acusadas de cometerem algum tipo de violência contra suas companheiras, uma iniciativa do Núcleo de Atendimento ao Homem Acusado de Violência contra a Mulher (Nuah), ligado a Vara de Penas Alternativas, com reconhecimento do Órgão Central de Macrogestão de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) e convênio com a Pastoral Carcerária, instituição que oferece apoio espiritual, social e jurídico a pessoas encarceradas.

Participando das rodas de conversa, Bira avalia as transformações que o método tem promovido na sua forma de agir e pensar. “Eu achei muito bom ter parado aqui. Deus não faz nada pela metade, para quem acredita em Deus, e eu acredito, tudo tem um propósito e o meu foi ter vindo para mudar minha vida”, revela. “Eu fiz algo de errado, tenho que ver esse lado. Tenho que fazer meus questionamentos porque às vezes posso penalizar alguém que não merecia”, avalia.

Essa forma de pensar foi sendo construída ao longo dos encontros, que tiveram início em junho de 2023 e encerram em dezembro. “No primeiro dia todo mundo estava revoltado, se sentindo injustiçado. É muito pesado, você chega aqui revoltado, porque vai impactar no seu trabalho, mudar sua rotina, mas agora eu vejo como uma vantagem, porque é como se fosse uma pausa na vida, porque no dia a dia a gente não para pra conversar com ninguém. Quando lembro das conversas que tive aqui é muito bom”.

Para ele, a maior vantagem dos encontros, realizados quinzenalmente, “é a pausa que a gente dá na rotina e conteúdo das conversas, que nos faz refletir sobre o perdão, a bondade. Isso é muito vantajoso. Nas duas primeiras reuniões eu vim à força, mas com o tempo a gente descobre o lado bom, sempre apresentando um tema que agrega na vida”.

Acusados de violência doméstica participam de círculo restaurativo no Fórum Clóvis Beviláqua

Durante os círculos, os facilitadores que conduzem os encontros tentam criar um ambiente positivo e resolver problemas de relacionamento, ensinando os participantes a lidarem com conflitos e evoluir. Nesse sentido, Bira ressalta que os depoimentos ajudam a dar um alerta, “não só com o relacionamento com a esposa, mas também com amigos, família, filhos e profissional. Em algumas reuniões o tema mulher ficou longe e gente fica mais focado no outro em geral. Faz a gente perceber a violência, servindo não só para esse momento pelo qual estamos passando. É como se você estivesse no trânsito, que precisamos parar o carro, respirar e pensar a vida”, reflete.

Próximo de concluir a obrigação de participar das reuniões, Bira se voluntariou para continuar a frequentar os círculos como forma de contribuir, por meio de sua experiência pessoal, com a transformação de outros homens. “Se eu puder vir de vez em quando e dar um testemunho, sem me intrometer, eu estou à disposição. Quero ajudar de algum jeito, porque os círculos estão me ajudando muito. Sei que minha caminhada continuará, minha volta para a normalidade vai ser lenta”, define ele.

METODOLOGIA

A Justiça Restaurativa propõe um modelo alternativo ao sistema de Justiça criminal tradicional, que busca promover a conscientização e suporte tanto para as vítimas quanto para os agressores. Ao contrário do sistema punitivo, que se concentra na pena e no isolamento dos agressores, o modelo restaurativo busca a reconciliação, a reparação e a prevenção de futuras violências.

Por meio da Resolução nº 288/2019, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu a política institucional do Poder Judiciário para a promoção da aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade, com foco na restauração das relações e a promoção da cultura da paz, a partir da responsabilização com dignidade, autonomia e liberdade.

Já Resolução nº 124/2022 do CNJ recomendou a todos os tribunais do País que instituam e mantenham programas voltados à reflexão e responsabilização de agressores de violência doméstica e familiar, com o objetivo de promover reflexão sobre as questões de gênero, direitos humanos e fundamentais da mulher e construção social da masculinidade.

Irmã Gabriela Pina é uma das facilitadora do círculo restaurativo

Um dos principais benefícios para homens acusados de violência doméstica é a oportunidade de se confrontar diretamente as consequências de suas ações. Por meio de diálogos mediados, eles têm a chance de pensar sobre o impacto que sua violência teve sobre as vítimas, bem como sobre as famílias e comunidades. “É uma experiência que pode ser profundamente transformadora, ajudando-os a desenvolver empatia e compreensão das consequências de seus atos, mas sem julgamentos. É um olhar para si com o objetivo e identificar a violência que há dentro e fora”, explica a facilitadora irmã Gabriela Pina, da Pastoral Carcerária.

Além disso, os grupos oferecem um espaço seguro para que os agressores possam refletir sobre suas atitudes e comportamentos, identificando as causas da violência. Por meio de rodas de conversa e dinâmicas orientadas, eles podem explorar e tentar compreender questões como raiva, controle e padrões de relacionamentos disfuncionais. “Os relatos são sempre espontâneos com base na confiança que se vai estabelecendo ao longo dos encontros”, esclarece a facilitadora.

Nesse sentido, a psicóloga Laudiceia Fonseca Botelho Ferreira, que atua com acusados de agressões há mais de dez anos, avaliou que as atividades desenvolvidas nos círculos restaurativos possibilitam criar um espaço de empoderamento aos participantes para que possam expressar seus sentimentos.

Para ela, essa metodologia é excelente, “pois propicia uma reflexão sobre a violência intrínseca e extrínseca. À medida que os homens são ouvidos e participam ativamente das atividades propostas, eles podem reavaliar suas ações e atitudes frente aos seus futuros relacionamentos”, afirma a profissional.

SAIBA MAIS

Nas próximas matérias da série “Novos Horizontes da Justiça Restaurativa”, conheça o recém-iniciado projeto Custódia Restaurativa, voltado para pessoas presas em flagrante por crimes comuns e beneficiados com a liberdade durante a audiência de custódia na Comarca de Fortaleza.

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