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Muitas histórias de amor sem príncipes encantados

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09.08.2010 Cidade
No ambiente frio e impessoal das prisões, é possível o surgimento de relações afetivas, muitas vezes, por acaso
Um gueto institucionalizado. Assim pode ser definido o ambiente prisional, marcado por um ambiente frio, impessoal, que segrega e mata desde sonhos até relações sociais e afetivas, que ficam limitadas pela quebra do direito de ir e vir desta população. Assim, os muros das instituições prisionais, a exemplo do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa delimita não apenas o espaço geográfico entre dois mundos distintos, mas também sentimentos. Como o que sentem as 22 mulheres daquela unidade que mantém relacionamentos afetivo-sexuais além muro do presídio. O local, no município de Itaitinga, abriga 416 mulheres com capacidade para apenas 374 detentas. Muita gente.
Dentre estas mulheres, nove têm como companheiros detentos do Instituto Professor Paulo Olavo Oliveira (IPPOO-II). Neste caso, apesar da distância física ser apenas de alguns metros, não tornam essas relações mais próximas, uma vez que o contato só acontece de 15 em 15 dias, durante três horas, quando são permitidas as visitas íntimas.
A saudade faz parte da vida dos casais que não dividem o dia a dia. No entanto, só não é maior do que o constrangimento enfrentado pelas companheiras, no momento da revista. Para alguns, esta é a maior declaração de amor, como admite Emanuel Coelho de Amorim Peixoto, 30 anos, para quem a visita com a família e a companheira é o que de melhor acontece na sua vida. Abandonado pela mulher, conseguiu conhecer, por acaso, a atual namorada com quem vai casar, em breve.
“Foi através da mulher de um companheiro. Ela disse que tinha uma amiga, levou minha foto, e trouxe a dela. A gente gostou um do outro”. A falta do contato diário, elemento fundamental para a construção de uma relação afetiva, não constitui entrave. “Foi amor à primeira vista”. Com a certeza peculiar dos apaixonados diz: “Vamos casar aqui mesmo, no presídio”.
Relações construídas entre as brechas deixadas tanto pela legislação quanto pelo desejo de encontrar um novo significado para a vida de pessoas que estão presas, nem por isso deixam de ser intensas. A jovem Bruna Pinheiro Moreira, 21 anos, conheceu o companheiro com quem mantém um relacionamento, há dois anos, na casa de uma amiga.
Mãe de um filho de três anos, reconhece como demonstração de amor o apoio. “Ele me ajuda com o meu filho e não me abandona”. Assim, o amor é expresso por diversas formas. O “eu te amo” ganha várias dimensões que passam pelo cuidar, como revela Ana Lorena Barbosa Viana, 34 anos. Ela encontra nas demonstrações de afeto da companheira uma declaração de amor. “Nunca ninguém tinha cuidado assim de mim”, confessa, prometendo escrever um livro sobre sua história de amor. Outra maneira de expressar o sentimento é a disposição de passar pelo constrangimento da vistoria, antes da visita íntima.
Diretores dos presídios, sobretudo dos masculinos, reconhecem que o momento da visita requer muito cuidado, podendo ser a porta de entrada para drogas e celulares, explica Elindomar Batista Caminha, chefe de Segurança e Disciplina do IPPOO-II. As visitas, realizadas às quartas e domingos, reúnem 250 pessoas.
A entrada de crianças é vista com cautela, sendo proibida a de adolescentes entre 12 e 17 anos, para evitar situações de exploração como “venda” ou “leilão” de filhas de detentos. O chefe de Segurança do IPPOO-II garante: “Essas histórias fazem parte do passado”. Hoje, o controle é maior, no sentido de garantir que as visitas íntimas sejam feitas apenas por companheiras de relações estáveis ou casadas. A burla sempre existe, como por exemplo, homens emprestarem nomes para outros.
Discurso amoroso
Cada período da história constrói o seu discurso amoroso. O mesmo acontece com os diferentes grupos sociais, já que a afetividade faz parte do ser humano. Dessa forma, cada civilização, a partir de elementos do seu contexto socioeconômico e cultural, inventa o seu.
RELAÇÕES QUE TRANSFORMAM
Prisão não mata o afeto
As pessoas, apesar das condições adversas em que se encontram, terminam descobrindo formas de amar e expressar seus sentimentos, como ocorre com a população carcerária, que constrói suas histórias amorosas a partir de simples gestos de solidariedade, troca de cartas, envio de fotos. Agora, com a ajuda das novas tecnologias digitais, as mensagens por celulares são usadas para começar ou manter essas relações que podem surgir no próprio cárcere.
O contato com o mundo lá fora, seja através da visita social com a família e amigos, ou as visitas íntimas, é fundamental no processo de ressocialização da população carcerária, estimada em 473.626, no Brasil. Claro que o trabalho e a educação também aparecem como principais formas de melhorar o ser humano.
E, para mostrar que a prisão não consegue destruir tudo nas pessoas, histórias de amor nascem ou são levadas para o interior dos presídios. Essas histórias são construídas sem príncipes encantados ou princesas, mas utilizam personagens reais que, muitas vezes, se conhecem no próprio cárcere, como aconteceu com o jovem Esoj Saile Benvindo, 23 anos, cujo primeiro contato com sua namorada foi na carceragem da Delegacia de Capturas, em Fortaleza. “A gente conversava muito… e, aí, começamos a ficar juntos. A gente vai se casar”, planeja.
As histórias são comuns, iniciadas fora ou dentro dos presídios, mas expressam reações de um mundo considerado marginal. São banais, passando ao largo de algumas que se tornaram famosas e são recontadas pelo mundo afora, em romances que passam de geração em geração, como a de Romeu e Julieta, por exemplo.
O que todas essas relações demonstram, no entanto, é que a prisão não consegue matar tudo nas pessoas.
A participação da família e a possibilidade de manutenção ou recuperação dos laços afetivos são os ingredientes fundamentais na vida de Daniele de Moraes Bonfim, 35 anos, pedagoga, acusada de participar do assassinato do marido, condenada a 17 anos de prisão.
O acaso serviu para nortear uma nova história de amor na vida de Daniele, que mesmo estando presa e condenada, ganhou marido e filho. Com a capacidade de transgressão tão peculiar aos amantes, o marido abandonou a batina e vive um amor que transgride regras sociais, como todo amor-paixão.
Amor e crime
Assim como a própria natureza humana, o amor é também paradoxal. Sua essência é sempre marcada pela incerteza. O que dizer de mulheres que enfrentam uma fila ao sol, expostas a uma vistoria humilhante e ofendidas com palavras?
“Vejo por dois ângulos”, responde Bento Laurindo, coordenador do Sistema Penitenciário do Ceará (Cosipe), enxergando em algumas mulheres a “verdadeira paixão”, enquanto que em outros casos, vê “a questão de alguém se aproveitar de uma situação”.
Bento Laurino admite que estas relações são marcadas também pelo afeto. “Existe o sentimento, mas também há muito proveito”, diz, justificando que entre 58% a 60% dos casos de tráfico, as mulheres serem utilizadas pelos homens. “Isso é amor ou coação?”, pergunta. Não sabe se considera ato de amor obrigar a levar um celular ou drogas nas partes íntimas.
“Pretendo sair daqui e encontrar meu filho”
A primeira perda na vida de Emanuel, 30 anos, cumpre pena de 15 por tráfico de droga, foi o amor da esposa, mãe do filho, hoje, com quatro anos. O olhar e a expressão do rosto denunciam o sentimento de culpa que o jovem, que cursa o 3º ano de Direito carrega. “Tudo por causa de bebedeira”, lamenta. Há três anos e cinco dias (a contagem é precisa) no presídio, com direito a falar com a família apenas duas vezes por mês, pelo telefone, o jeito é construir uma nova vida, mesmo entre quatro paredes. A lição foi seguida à risca por Emanuel. Graças à ajuda da esposa de um colega de cela, conheceu um novo amor, com quem tem uma filha de quatro meses, e pretende casar em breve no próprio presídio, local onde são iniciadas diversas histórias de amor.
“A minha expectativa é maravilhosa. Pretendo sair daqui e encontrar o meu filho”, revela, enfatizando a esperança de sair do presídio o quanto antes. “Sou réu primário, falta a apelação e pretendo recorrer da sentença”. O tempo passa com muita lentidão, sendo visível a impaciência do detento. A construção de relações afetivas é uma forma de amenizar a dureza do cárcere, porque afasta a solidão, admite.
“Quando descobri, era tarde, estava apaixonada”
A sobrancelha bem delineada, o cuidado com a pele, o cabelo e as unhas refletem a autoestima de Bruna, 21 anos, primeiro ano do Ensino Médio, presa por tráfico, encontra-se há seis meses no presídio feminino, aguardando julgamento. No rosto, Bruna conserva os traços da menina, mas o olhar é um pouco triste. “Há seis meses não vejo meu filho. Não quero que ele me veja nesta situação”, conta Bruna, cuja família mora em Jaguaruana, cidade na qual viveu a infância.
“Os dias demoram a passar”, diz com suavidade, gesticulando com as mãos, e exibindo a aliança que não está ali por acaso. Ela simboliza o amor que sente pelo companheiro de 36 anos, preso também por tráfico de droga, no IPPOO-II. “A gente vai se casar quando sair daqui”, sonha, enquanto lamenta a ausência do filho de três anos, que teve no Interior. “É pior do que não ter a visita do meu namorado”, compara.
Sem saber contar direito como o romance começou, Bruna lembra apenas que conheceu o companheiro na casa de uma amiga. “Ele me convidou para sair, fomos a um restaurante, e começamos a namorar”. Tudo aconteceu muito rápido e de forma prática, sem declarações de amor ou outras formas românticas de demonstrar a paixão, características comuns aos jovens apaixonados. Foi tudo muito ligeiro, resume. “Depois de quatro meses de namoro a gente foi morar juntos e já estamos há dois anos”.
Nem mesmo a prisão do companheiro, a primeira aconteceu em agosto do ano passado, conseguiu pôr um fim na relação que confessa não ser fácil. “Eu ia visitar ele (sic) no presídio toda semana. Muitas vezes, dormia na fila”, lembra, explicando que quanto mais cedo chegar mais tempo as mulheres têm para ficar com os companheiros. “A revista demora muito”, diz, mas não faz crítica à forma como ela é feita, fazendo parecer que é natural, ou seja, faz parte das regras do presídio, portanto deve ser cumprida.
Bruna conta que quando conheceu o companheiro “não sabia que ele mexia com isso (drogas)”. Quando descobriu foi tarde, estava apaixonada e não tinha mais jeito. “Gostava dele, continuei e não deixei. Nem quando ele foi preso”, confessa, ao mesmo tempo em que faz, indiretamente, uma declaração de amor. Declaração não menos forte do que a de se dispor a entrar numa cela, onde ficam até seis detentos, para encontrar com o marido, todos os domingos.
“Naquela hora, quem não tem visita sai, e tudo é fechado. Quando alguém entra, bate antes”, descreve, afirmando que faz parte do código de conduta dos detentos o respeito às companheiras dos amigos de cela. “As mulheres não veem os homens. É proibido olhar para a mulher do outro”, revela.
Uma relação pela metade, já que a falta da presença diária acaba gerando insegurança e ciúme, sentimento descartado por Bruna. “Confio nele e nem penso nisso. Se ele quiser arranjar outra, é fácil dar um jeito, um entra com o nome do outro, é melhor não se preocupar”. Quando a gente sair daqui vamos viver juntos”.
Apaixonada, redime o companheiro. “Ele não teve culpa” assegura, apesar de dizer que não tinha envolvimento com drogas. “Ele me ajuda e não me abandona em nenhum momento”, orgulha-se. A esperança é sair da prisão dentro de oito meses. Caso o marido permaneça preso, o ritual da visita vai continuar. “É ruim, mas a gente se acostuma, não dá para ficar junto direito”. A saudade é inevitável. “Já mandei carta pra ele porque estava sentindo sua falta n a semana”.
Visita a presos
O que diz a Lei
Além de solidariedade, é um direito, e tem amparo legal no Artigo 41, Inciso 10, da Lei
das Execuções Penais (Lei 7.210). A lei determina a visita do cônjuge, companheiro e amigos. A visita íntima não tem regulamentação, ficando a critério de cada presídio. Em Fortaleza, as visitas íntimas nas unidades prisionais masculinas acontecem no interior das celas, não sendo garantida a privacidade. As filas nas unidades masculinas variam entre 250 a 600 mulheres.
IRACEMA SALES
REPÓRTER