Maternidades negras: Mães na luta contra a discriminação racial
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- 21-05-2024
A quinta matéria da série “Muitos jeitos de ser mãe”, produzida pela Assessoria de Comunicação do TJCE, traz relatos de profissionais da Justiça que, além de lidar com todas as emoções e desafios que envolvem a maternidade, encontram força e resiliência para enfrentar o racismo cotidiano e lutar para que seus filhos e filhas possam crescer em uma sociedade livre de preconceitos e discriminação.
Para além dos encantos, a maternidade traz consigo uma série de desafios, multiplicados quando se trata de gerar, criar e educar filhos e filhas em uma sociedade marcada por diversas formas de desigualdade baseadas no cromatismo da pele. Nesse contexto, mães negras, pretas e pardas, assumem, além das responsabilidades do cotidiano, o protagonismo na missão de ensinar sobre a importância da resistência e do enfrentamento ativo às discriminações raciais. Nas redes de amor, cuidado e proteção que tecem ao redor de suas crias, constituem vínculos e fortalecem identidades.
“Ser uma mãe empenhada no combate aos preconceitos e às discriminações é arrumar um trabalho a mais no processo de educação dos filhos. Mas, sem isso, eu não seria uma boa mãe. Na verdade, eu só sou uma mãe completa porque as minhas preocupações ultrapassam o ambiente doméstico e chegam ao social, porque busco um futuro melhor para minha filha e para o meu país.”
O relato é de Ana Cláudia Gomes de Melo, mãe solo da Mariana, ou vovó Cláudia, como é carinhosamente chamada pela neta Celina, de apenas quatro aninhos. Mulher negra-parda, natalense, de 53 anos, ela atua no Poder Judiciário cearense como juíza titular da 3° Vara de Sucessões da Comarca de Fortaleza.
Sua atuação se estende para além das salas de audiência, sendo presidente da Comissão de Processos Administrativos Disciplinares dos Cartórios da Capital e integrante da Comissão Recursal de Heteroidentificação, da Comissão de Políticas Judiciárias de Promoção da Igualdade Racial e do Núcleo de Produtividade Remota.
Sua trajetória representa e inspira tantas outras mulheres e mães. A magistrada ganhou sua primeira e única filha aos 18 anos e, com as supostas previsões de fracasso decorrentes de suas condições de classe e raça, além da iminente reprovação dos pais, precisou superar essas e tantas outras dificuldades para garantir o sustento de sua menina.
Ana Cláudia recorda que conciliar os esforços para conseguir um futuro melhor com as responsabilidades maternas foi desafiador, no entanto, esse impasse também foi importante para fortalecer a ligação entre as duas. “Não foi fácil…tive que trabalhar para sustentar a minha filha e, já com três anos de idade, eu precisei levá-la para a faculdade para assistir aula junto comigo. Mas consegui estudar e, ao mesmo tempo, cuidei dela. Eu cresci e amadureci junto com ela. Por isso que hoje nós temos uma relação de amizade e carinho tão grande”, recorda a juíza muito emocionada.
Inserida por anos nesse contexto de vulnerabilidade social, a mobilização em prol de uma sociedade mais equitativa inevitavelmente fez parte da história de Ana Cláudia e, mais tarde, se estendeu a sua atuação enquanto mãe. Durante o processo de criação de Mariana, ela fez questão de repassar o legado de uma mulher empoderada e comprometida com o combate ao preconceito racial. “Eu sempre procurei educar minha filha para ela ser livre. Livre para fazer as suas escolhas e para não baixar a cabeça diante das opressões, fossem elas raciais ou de gênero”, afirma.
A realidade do racismo se faz presente em diversas esferas da sociedade e, apesar de nunca ter precisado se impor para defender sua filha ou sua neta de qualquer tipo de discriminação, a juíza não esteve imune às ofensas baseadas na cor de sua pele. “Eu já passei por inúmeras situações em que precisei me defender, inclusive no trabalho. Já houve instituições que não aceitaram a minha liderança. Não sei se por ser uma mulher, mas também por ser uma mulher negra-parda. A minha imagem já foi tratada como diferente, falam sobre não ser comum uma juíza ter o meu cabelo”, declara.
A avó de Celina olha para o futuro com bastante esperança e determinação. Ela acredita firmemente que os caminhos para um país mais justo e menos preconceituoso passam pela representatividade e pela inclusão de mulheres negras em lugares de destaque. “As pessoas não podem mais se chocar ao encontrar uma mulher preta ocupando um espaço de poder”, considera a magistrada.
Assim como Ana Cláudia, que encontrou na maternidade a força para lutar contra as adversidades sociais, outras mães do Judiciário compartilham desse mesmo propósito. É o caso da servidora Feliza de Sousa Ferreira, coordenadora de Atividades Judiciais do Fórum Clóvis Beviláqua, que, embora tenha trilhado um caminho diferente, também enfrenta os desafios com coragem e resiliência.
Contrariando a lógica da suposta idade certa para ser mãe e superando uma síndrome que poderia causar infertilidade, Feliza teve a sua primeira filha aos 30 anos de idade. O presente recebeu o nome de Ester. Entretanto, apesar de toda a alegria causada pela chegada da criança, ela conta as dificuldades vivenciadas pós-gestação e a decisão tomada, naquele momento, de que não teria mais filhos. “O pós-cirúrgico foi muito difícil. A menina chorava direto, tinha dificuldades para mamar e, mesmo com uma rede de auxílio, eu afirmava que seria mãe de uma criança e estava ótimo”, recorda.
O destino, porém, tinha outras surpresas para a servidora. Anos depois, sem programação alguma, engravidou de seu segundo filho, Kauê. Naquele instante, parecia que ser mãe de um casal seria o suficiente. Na época, seus familiares até sugeriram que ela realizasse a laqueadura, mas Feliza revela que algo lhe dizia para fazer o contrário. “Alguma coisa dentro de mim dizia não. E a esposa do meu obstetra me disse que se eu sentisse no coração que não deveria realizar o ligamento é porque Deus tinha mais”. Bingo! Foi nesse cenário que nasceu Kaleb, seu caçula.
Na tessitura da vida familiar de Feliza, a educação dos filhos transcende as lições convencionais. Ela se reconhece como uma mulher negra e, na construção diária dos vínculos familiares, também assume esse papel de arquiteta de uma consciência social. Com a sabedoria de quem conhece as dores e as delícias da maternidade, ela entrelaça em pequenos gestos do cotidiano a importância de respeitar a diversidade racial e de se posicionar diante das injustiças.
“Eu sempre disse que nós precisamos aceitar as diferenças e as pessoas como elas são. Nós conversamos sobre a questão do racismo e eu os ensino sobre denunciar essas situações, pois não é mais um problema seu e sim social”, relata. Feliza se diz esperançosa por uma sociedade menos discriminatória e diz que é necessário “ensinar aos filhos que precisamos construir uma sociedade de justiça e respeito”, conclui a servidora.
Instituída pela Resolução n° 35/2022 do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), a Comissão de Políticas Judiciárias de Promoção da Igualdade Racial foi desenvolvida com o objetivo de auxiliar os órgãos diretivos (Presidência, Vice-Presidência e Corregedoria-Geral da Justiça) na adoção de medidas direcionadas ao combate às discriminações raciais e à valorização das práticas antirracistas. Entre as atividades promovidas pelo grupo estão a produção de pesquisas e eventos sobre a temática, além de campanhas institucionais com a capacidade de fortalecer uma cultura de respeito aos direitos humanos.
Em 2021, o TJCE deu um passo importante para a valorização do ambiente laboral com a criação da Comissão de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Moral, ao Assédio Sexual e à Discriminação. Essa iniciativa, estabelecida pela Portaria nº 321/2021, visa promover um espaço de trabalho mais respeitoso e protegido dentro da esfera do Poder Judiciário. Desde sua criação, já implementou uma série de ações pertinentes ao seu propósito, incluindo a realização de eventos, palestras e cursos.
A série de reportagem “Muitos jeitos de ser mãe” segue durante este mês, em homenagem ao Dia das Mães, comemorado no dia 12 de maio. Por meio de relatos de magistradas e servidoras da Justiça, traz um olhar para a maternidade real, em sua pluralidade de vivências e desafios. A série destaca também os serviços oferecidos pelo TJCE que beneficiam as mães, sejam elas profissionais ou usuárias da Justiça.
A primeira matéria contou histórias de servidoras que, mesmo diante de obstáculos, encontraram caminhos para exercer a maternidade (Acesse aqui). Na segunda, mães de primeira viagem compartilham os sentimentos e desafios do puerpério (Clique aqui). A terceira matéria mostrou as transformações da maternidade em diferentes fases da vida (Acesse aqui). A quarta parte abordou a busca pelo equilíbrio entre carreira e maternidade (Confira aqui).
Os próximos temas serão as lutas das mães por uma sociedade mais inclusiva e a importância de cuidar, também, de quem cuida. Continue acompanhando nos canais de comunicação oficiais do TJCE.