Dia da Mulher Juíza: Conheça a trajetória de duas mulheres separadas pelo tempo, mas unidas pelo amor à magistratura
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- 10-03-2025
Os passos firmes são de quem nunca teve medo de encarar desafios e, desde muito cedo, sabia a profissão que iria seguir. Natural de Saboeiro, no Sertão dos Inhamuns, ela recebeu o apoio da mãe, que era professora, para estudar e seguir um sonho pouco comum entre as meninas nascidas na década de 1940. “Por incrível que pareça, aos 10 anos de idade alguém me perguntou: ‘Quando você crescer, você vai ser o quê? Eu disse: Juíza’. Isso selou a minha vida profissional. Nunca mudei de ideia, nunca achei que mulher não poderia ser juíza. Estudei até conseguir, com esse objetivo”, relembra Edite Bringel Olinda Alencar.
Após dois anos e meio de experiência como promotora de Justiça, aos 27 anos, ela conquistou a tão sonhada aprovação no concurso para juíza do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). Assumiu vaga em 1970, na Comarca de Ubajara. “Só tinha ideia de onde ficava quando eu olhava o mapa. A escrivã de lá foi no ponto do ônibus, porque não tinha rodoviária nessa época, aí perguntou para o rapaz da agência: ‘A juíza daqui veio?’ E ele disse: ‘Não, aqui só desceu fulano e uma mocinha’”, conta sorrindo.
A mocinha era, na verdade, a juíza Edite Bringel. Apesar de jovem, ela ressalta que logo conquistou o respeito da população. “Em relação à cidade, eu não senti obstáculo nenhum, prejuízo nenhum, medo nenhum. Pelo contrário, eu me sentia sempre acolhida. Ninguém me desafiou, nada disso, uma coisa tranquila. Naquela época não tinha droga também, os crimes eram menos complexos do que hoje.”
Para Edite, os desafios do início de carreira eram outros. “Primeiro, máquina de escrever. Ninguém tinha uma secretária ou secretário para nada. Você fazia o trabalho de pesquisa. Não tinha computador, era livro. Eu me lembro que lá em Ubajara uma vez eu vim para Fortaleza comprar livro, porque eu estava precisando. Tinha aparecido um inventário muito complexo e eu precisava de livro, e vim só comprar livro e voltar. Era tudo dessa forma.”
A ascensão profissional era mais um obstáculo e, por isso, era tão complicado chegar ao cargo de desembargadora. “A gente tinha uma certa dificuldade, as mulheres, de promoção. Elas só iam promovendo, na maioria das vezes, por antiguidade. Porque vocês sabem que a gente tem promoção por antiguidade e por merecimento, alternadamente. Eu fui a primeira mulher a entrar por merecimento no Tribunal de Justiça, já em 2004″, diz orgulhosa do feito.

A desembargadora Edite Bringel também foi a primeira mulher a exercer o cargo de ouvidora do Poder Judiciário estadual e a segunda corregedora-geral da Justiça do Ceará. Esse caminho, segundo ela, foi pavimentado por outras magistradas igualmente brilhantes. “Quando eu entrei na magistratura havia seis juízas em todo o Estado do Ceará. A Auri Moura Costa nos abriu as portas, foi a primeira juíza do Brasil, em 1939, e eu ainda a conheci. Uma excelente juíza, muito respeitada. Escreveu livros, descobriu umas mazelas na casa de detenção, publicou e tomou providências. Uma juíza assim fora do seu tempo”, afirma, acrescentando que a participação feminina na magistratura ainda era reduzida.
“No meu concurso entramos três mulheres. E o percentual, eu penso que devia ser 12%. Hoje, o Tribunal tem todo o empenho de colocar mulheres. Acho que as coisas se equilibraram muito. Eu diria que o caminho está aberto. Pela desembargadora Auri, pela desembargadora Águeda Passos, e por outras desembargadoras que já passaram. É porque você sabe que a mulher precisa se autoafirmar o tempo todo. Agora a coisa já está mais acessível, mais fácil, mais aceita”, comemora.
Edite Bringel assumiu a Corregedoria-Geral da Justiça do Ceará em janeiro de 2011. Retornar ao prédio onde trabalhou por dois anos também foi motivo de celebração. E a estrutura imponente tem o dedo de uma mulher: a desembargadora Águeda Passos Rodrigues Martins. “Aqui tem muito do bom gosto dela, das escolhas dela, que se dedicou a essa construção quando era corregedora.”
Em janeiro de 2013, após 43 anos de dedicação ao Judiciário cearense, Edite Bringel aposentou-se do TJCE. “Não faria nada diferente. Foi a profissão pela qual eu me encantei mesmo”, fala realizada. Coincidentemente, nesse mesmo ano, no mês de julho, uma outra mulher iniciava a tão sonhada carreira de magistrada no Tribunal de Justiça do Ceará.
“Eu tenho um espelho em casa. Minha mãe é juíza há quase 43 anos, não era nem nascida quando ela se tornou juíza. Ela levava os filhos ao fórum. Então, desde pequenininha, eu convivi com o processo, como era a rotina de uma juíza, e eu acho que isso acabou levando, influenciando mais lá na frente, na hora de prestar o vestibular, e tentar um concurso público para a magistratura”, relata Leopoldina de Andrade Fernandes.
Natural de Natal, no Rio Grande do Norte, ela assumiu vaga na Comarca de Ibicuitinga. “Era uma cidade bem pequena mesmo, com pouca estrutura, mas que tinha muitos processos. É muita dificuldade no início, né? Então, a gente acaba contando com a ajuda dos amigos, também dos colegas que assumem o concurso com você. Isso faz total diferença, além do apoio da família, que a gente busca nesses momentos.”

E, apesar de já ter iniciado carreira mais de sete décadas depois da primeira juíza do Brasil, Leopoldina ainda sentiu o preconceito pelo fato de ser mulher. “Às vezes, uma postura em uma audiência, por exemplo, de um advogado, você nota que ele tem uma postura diferente quando está diante de uma juíza mulher, uma magistrada. Eu acredito que se fosse um juiz, um homem, ele não agiria dessa forma, não falaria dessa forma, e acaba nos forçando a realmente ter uma postura que possa repreender isso e mostrar que nós podemos estar ali, nós temos capacidade para isso, e o fato de ser mulher não diminui nada. Para mim, não é empecilho”, assegura.
Ao falar sobre a trajetória de Auri Moura Costa, a juíza imagina os desafios enfrentados naquela época. “Ela foi uma pioneira, nossa primeira mulher juíza na década de 30. Se hoje a gente ainda tem desafios que o nosso dia a dia nos leva a isso, eu imagino há décadas, o que ela não passou e o que teve de enfrentar para conseguir realmente trilhar esse caminho que ela criou, tão bonito e tão inspirador para nós, juízas.”
Apesar de ter enfrentado alguns episódios de misoginia, Leopoldina reconhece que sempre encontrou apoio do TJCE. “Eu acho bastante democrático, a participação feminina mostra isso. Essas barreiras que a gente tinha antigamente, hoje a gente está conseguindo transportar, está conseguindo ultrapassar isso. As mulheres já demonstraram que a capacidade intelectual é inegável, e que a gente consegue sim, apesar dessas outras circunstâncias, mas a gente consegue ser uma boa mãe, uma mulher, e consegue sim ser uma excelente profissional. Então, cada vez mais nós vemos mulheres, principalmente aqui no Tribunal, ocupando os postos de destaque”, celebra.
Entre as ações de incentivo está o Programa de Fortalecimento de Lideranças Femininas, por meio do qual foi lançado o Comitê Gestor de Equidade de Gênero. A iniciativa integra a Estratégia de Transformação Digital do TJCE, viabilizada pelo Programa de Modernização do Poder Judiciário (Promojud), e está alinhada ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 5 da Agenda 2030 da ONU, que trata da igualdade de gênero, inclusão feminina e orientação profissional para quem deseja ocupar posições de liderança. Clique AQUI para saber mais.
Outra medida adotada pelo Judiciário cearense foi garantir condições especiais de trabalho às magistradas e servidoras gestantes, puérperas e lactantes, que podem ficar em regime de teletrabalho após o fim da licença-maternidade. “Isso foi algo que surgiu na pandemia de Covid-19. A desembargadora Maria Nailde Pinheiro Nogueira, na época presidente, achou uma ideia excelente e nós fomos o primeiro Tribunal a ter esse direito garantido, de todas as servidoras e magistradas, caso queiram, após a licença-maternidade, optar pelo teletrabalho. Inicialmente foi um período de seis meses e foi tão positivo, não traz prejuízo realmente, pelo contrário, incrementa a produtividade, ter uma mulher bem, uma mãe bem, ela vai produzir melhor, que isso foi ampliado. Hoje são os dois primeiros anos, a mulher pode ficar trabalhando de casa, então eu acho que foi uma conquista muito grande.”
A juíza Leopoldina Fernandes, que atualmente integra o 1º Juizado Auxiliar das Varas de Família, Sucessões e Infância e Juventude de Fortaleza, é coordenadora adjunta do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) da Capital. Desde que entrou no TJCE, viu duas mulheres chegarem à Presidência: as desembargadoras Maria Iracema Martins do Vale (2015-2017) e Maria Nailde Pinheiro Nogueira (2021-2023). “E hoje nós temos três mulheres à frente de postos aqui no Tribunal: Corregedoria (Marlúcia de Araújo Bezerra), Ouvidoria (Andréa Mendes Bezerra Delfino) e Esmec (Joriza Magalhães Pinheiro). Acho que por tudo o que nós mulheres mostramos, da nossa capacidade, isso acaba sendo algo natural, nós vamos ocupando mesmo
mais espaço.”
Para as futuras juízas, o conselho de Leopoldina é o mesmo repassado diariamente às duas filhas. “Elas são muito pequenas ainda, mas a gente procura sempre colocar isso dentro de casa. Vocês precisam estudar, vocês precisam ser independentes, só assim vocês vão conseguir ser felizes na vida.”
A educação também foi uma aliada para a desembargadora Edite Bringel, que acrescenta uma outra orientação às novas juízas e às que sonham em seguir carreira. “Eu diria que honrem a magistratura, que usem bem a espada e a balança para proteger a Justiça e impor uma decisão justa. Elas podem ser o que quiserem, onde elas quiserem.”
Após o reencontro proporcionado pela reportagem, na Corregedoria da Justiça, as duas concordaram que essa trilha de crescimento seguirá fortalecida enquanto houver uma mulher para dar a mão a outra, além de homens que entendam uma coisa: nós só queremos ocupar nosso espaço na profissão que escolhermos. Avante!

