Comissões de Heteroidentificação integram esforço do TJCE para garantir justiça social e pluralidade
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- 20-12-2024
“Se preto de alma branca, pra você, é o exemplo da dignidade, não nos ajuda, só nos faz sofrer. Nem resgata nossa identidade. Quem cede a vez não quer vitória. Somos herança da memória. Temos a cor da noite, filhos de todo açoite, fato real de nossa história!”
A tessitura musical de Jorge Aragão, eternizada pela saudosa Elza Soares, exprime a urgência de discutir saídas efetivas frente aos impactos causados pelo problema global do racismo. Em um país marcado pelo legado nefasto da escravização, a construção de mecanismos capazes de garantir a justiça social é tarefa indispensável. Para isso, é fundamental que instituições, sejam elas de caráter público ou privado, assumam o compromisso de fomentar uma sociedade mais equitativa, assegurando que todos(as) os(as) cidadãos(ãs) tenham pleno acesso às oportunidades, independente da sua origem étnico-racial.
Assumindo essa responsabilidade, o Poder Judiciário cearense instituiu, neste ano, a Comissão de Heteroidentificação (CH), que tem à frente o juiz Juraci de Souza Santos Junior, e a Comissão Recursal de Heteroidentificação (CRH), presidida pelo desembargador André Costa. Com a criação desses grupos, o TJCE promove a pluralidade e a devida identificação étnica dos candidatos(as) inscritos(as) nos concursos públicos para a magistratura. As medidas, instituídas pelas Portarias n° 176/2024 e n° 323/2024, atendem à Resolução n° 457/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que habilita a criação de Comissões dessa natureza.
Para o presidente da Comissão de caráter recursal, desembargador André Costa, todo esse esforço “inaugura um novo momento do Judiciário Estadual em prol da valorização das ações afirmativas, das políticas judiciárias antirracistas e de promoção da igualdade racial. Portanto, isto é motivo de intensa alegria e esperança, pois estamos implantando medidas concretas para eliminar o racismo institucional existente e assegurar representatividade e diversidade na Justiça.
Para além do discurso pautado no desenvolvimento social, o Tribunal de Justiça do Ceará tem demonstrado, na prática, seu empenho ao conceder plena autonomia às Comissões, permitindo assim um trabalho eficaz e independente. Isso pode ser atestado na atuação dos grupos durante as duas edições do Exame Nacional da Magistratura (ENAM), realizadas em 2024.
Uma série de esforços antecedem e encerram os certames. Em ambos, a CH e CRH executaram um papel relevante de divulgação dos critérios adotados para as vagas reservadas às pessoas negras, bem como de fiscalização para evitar possíveis fraudes.
Quanto à participação neste processo, a pessoa autodeclarada negra, residente no Ceará, deveria, no ato da inscrição, indicar a sua condição, segundo quesito de cor ou raça utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e, posteriormente, preencher um requerimento eletrônico, mais tarde submetido à Comissão de Heteroidentificação.
No que diz respeito à análise, é feita conforme a Resolução n° 541/2023 do CNJ, que organiza os procedimentos em duas etapas. A primeira acontece a partir de imagens enviadas no próprio requerimento, cuja confirmação é publicada em edital. Em caso de negativa, os interessados(as) são convocados(as) para a segunda fase, uma averiguação presencial ou telepresencial.
Na hipótese de uma nova recusa, o candidato ou a candidata tem direito a um recurso que é examinado pela CRH. A análise leva em consideração a filmagem do procedimento para fins de heteroidentificação, o parecer emitido pela CH e o conteúdo do recurso elaborado pelo(a) candidato(a).
Sobre os resultados, no primeiro ENAM, realizado dia 14 de abril, dos(as) 209 concurseiros(as) que apresentaram autodeclaração às Comissões, 144 tiveram os pedidos validados. Já na segunda edição, ocorrida em 20 de outubro, dos(as) 103 examinados(as), 39 obtiveram a aprovação. Durante as provas, as Comissões desenvolveram ainda, em parceria com a Assessoria de Comunicação Social do TJCE, cartilhas com as principais informações sobre o concurso e os processos de autodeclaração e heteroidentificação. Veja AQUI a edição mais recente.
Diante das estruturas racistas e da histórica sub-representatividade da comunidade negra nos espaços de poder, a implementação de cotas é essencial. Entendendo a importância, a Resolução n° 203/2015 do CNJ determina que 20% das vagas disponibilizadas em concursos públicos, para provimento de cargos efetivos ou ingresso na magistratura, sejam direcionadas a pessoas negras e pardas.
De acordo com a juíza e integrante das referidas Comissões do TJCE, Ana Cláudia Gomes de Melo, esta política pública afirmativa, presente nos concursos, se caracteriza como “um mecanismo essencial para corrigir desigualdades históricas e estruturais que afetam determinados grupos na sociedade. Elas promovem a inclusão e garantem a representatividade, contribuindo para a construção de uma sociedade verdadeiramente plural e comprometida com os valores antirracistas. Sem essas ações, corremos o risco de perpetuar injustiças e limitar o acesso a direitos fundamentais por parte de quem já enfrenta barreiras sociais e econômicas em razão da histórica exclusão socioeconômica de pessoas pretas e pardas”.
Longe da compreensão que as coloca como esmolas, as cotas são ferramentas criadas para mitigar os danos resultantes de um sistema socioeconômico desigual, exploratório e opressor que perdurou por cerca de 380 anos. Medidas como essa são fundamentais para fomentar a justiça social e proteger os direitos daqueles que, por um longo período da história, tiveram a sua condição humana negligenciada.
Ainda como parte das ações práticas em prol de uma Justiça igualitária do ponto de vista racial, o TJCE promoveu, entre os dias 15 e 26 de abril, o curso “Ações Afirmativas, Comissões de Heteroidentificação e Equidade Racial no Judiciário”. Participaram das atividades híbridas magistrados(as), servidores(as) e demais colaboradores(as) do Judiciário cearense.
A capacitação, que contou com a participação de juristas de outras regiões do país, abordou a construção social e histórica de raça, as dimensões estruturais e institucionais do racismo, as implicações dessa problemática, a condição da pessoa negra no Estado brasileiro, bem como conceitos ligados a branquitude e os procedimentos adequados de heteroidentificação.
O desembargador André Costa defende a relevância das Comissões e de eventos nesse espectro para que se possa estar cada vez mais próximo dos anseios das comunidades, sobretudo, das mais vulneráveis. “Fazendo um paralelo com a teoria de Hans Kelsen, jurista e filósofo austríaco, sobre os Tribunais Constitucionais, a legitimidade de um Tribunal de Justiça depende deste representar a população sobre a qual exercerá jurisdição, a qual se funda em duas premissas: a escolha democrática dos seus membros e a representatividade das minorias e das maiorias populacionais. Portanto, a legitimação e a democratização da Justiça no Brasil estão vinculadas diretamente à existência de pessoas negras exercendo a atividade-fim do Poder Judiciário, o qual deve ser composto por todos os segmentos raciais da população brasileira”, destaca.