A justiça se faz de cega, mas expia!
- 3394 Visualizações
- 17-07-2009
17.07.2009 viad e arte
Raymundo Netto
Precisei ir ao Fórum ? detesto aquele lugar ? saber de um processo que há 11 anos se arrasta em desesperança, embolado em pastas velhas, esquecido em contadorias sob olhos desinteressados e sem único julgamento. Não sei por que chamam tal negócio de ação, se o que vemos mesmo é a mais incômoda inércia. Pelo infeliz, passaram quantos juízes, nenhum deixou-me nada, nem saudação nem saudades. Nem nem…
Com a vexatória missão de procurar o atual juiz da Vara ? vivem mudando ? para pedir-lhe que julgue o processo de uma vez, e lembrando o último que não me ouvia e só repetia ?fosse breve, mais breve, terminou??, sentei-me à parada de ônibus com fé de desistir e voltar ligeiro para casa. No gramado, porém, vi um homem bigodudo, enfatiotado e cercado por alegres cães vira-latas. Mesmo em seus 150 anos, estalava os dedos, a caetanear: ?Enquanto os homens exercem seus podres poderes/ motos e fuscas avançam os sinais vermelhos/ e perdem os verdes/ Somos uns boçais…?
Indiferente ao colossal edifício, o velho jurista veio a mim, puxando a conversa:
? Que cara é essa, meu rapaz, algum problema? Posso ajudar?
? O problema, doutor, é que quando me disseram que a justiça era cega, tive imediata certeza: ela não está nem vendo! Ou melhor, só vê o que é grande, imenso e largo. O miúdo? Poucas chances, mesmo quando lavado por suores solitários do defensor público. Um dia ouvi: ?Se tiveres que optar entre a Justiça ou a Lei, optes pela Justiça.? Nada mais falso! A Justiça é de uma cegueira vitalícia, não assiste a nada, pedestalizou-se, afastou-se da realidade do povo, não só porque correu do centro da cidade ? prática esta adotada por todos os poderes na Fortaleza deslumbrada ?, mas por esquecer que a lei deveria servir para garantir a vida e a dignidade da pessoa humana. Como pode ela, arrogante, compreender das necessidades e carências de um povo e não irmanar-se aos interesses de quem, regalado, compartilha de sua mesa?
? Bem, é certo que onde não existe justiça não pode haver o direito. Ela é que deveria dar-lhe sustento ? frisou o bigode. ? Da mesma forma, se diz summum jus, summa injuria: excesso de direito, excesso de injustiça! Missão escabrósissima esta…
? Pois é, doutor Clóvis, penso que o sr. presidente do Supremo Tribunal deveria aproveitar a jurisprudência da moda e desobrigar o diploma também para o advogado, já que a própria Ordem dos Advogados do Brasil prova que diversas faculdades brasileiras não têm competência na sua formação e, assim, justifica o tal Exame da Ordem. Ademais, em matéria recente, li que 90% dos alunos que ingressam no curso de Direito visam apenas à aprovação em concursos públicos. Ou seja, para a maioria, o Direito é quase um ?cursinho especializado?…
? Data vênia, meu amigo, ? argumentou paciente, com libelo-lás nos ombros ? estudos se fazem necessários, a evolução da doutrina jurídica e de seu instrumental também. Aprendi: não se deve procurar o que é antigo, mas o que é bom. Sabe, fui sempre criticado por colegas, pois, mesmo quando podia, nunca saí do Brasil. Não largaria minha biblioteca por nada! Evitava luxos e mordomias, gostava de minha família e dos bichinhos no quintal da Tijuca. Chego a embargar a voz de saudades.
? Embargar? Pois sim, nunca vi coisa mais embargada que a Justiça. Será por isso que foram criados os desembargadores, para fazer a coisa andar? Então…
? Isso é tão desarrazoado, Raymundo. A justiça e a injustiça correm parelhas nos corredores forenses. Todavia, dizem que o melhor juiz de todas as coisas é o tempo.
? Vai ver é por isso a lentidão da justiça: é a espera do juiz! Com ?lanheza?, nossas leis, boa parte delas, são feitas para inibir o pobre. Este, não tem, de fato, acesso à educação, saúde, segurança e transporte porque não tem dinheiro para pagar por eles, mas tem que seguir as mesmas leis e normas daqueles que os esnobam e até zombam de tais leis. É justo isso?
? ?Tanto tens, tanto vales?. Lamentável ser esta é a lei maior da nossa sociedade. Meu filho, Jesus só foi crucificado porque o advogado de Barrabás era melhor… ? riu.
? E porque o juiz lavou as mãos, não? ? ironizei.
? Mas não se preocupe não, Raymundo, como dizia o velho Corneille: quando se vence sem perigo, triunfa-se sem glória. Os agentes do direito devem refletir sobre as suas atitudes e sobre o sentido de sua existência e missão. Pensando bem, o que assenta sob a nossa toga de magistrados senão a inteireza de caráter e o amor da justiça?
Clóvis Beviláqua (outubro de 1859 – julho de 1944), jurista, magistrado, jornalista, escritor e crítico, nasceu, há 150 anos, em Viçosa, Ceará. Em 1899, elaborou o Código Civil Brasileiro, o que lhe rendeu desgastante discussão com o (enciumado?) Rui Barbosa. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Tendo recusada a indicação do nome da esposa e escritora, Amélia de Freitas, para vaga na entidade (seria a primeira mulher na ABL), afastou-se de vez. Honesto e sem apelos materiais, morreu pobre.
Raymundo Netto tem um advogado surdo, um contador gago e um mototaxista cego de um olho, e após assistir ao revelador bate-boca entre o presidente (que sorriso medonho…) e o ministro do STF passou a ter pesadelos. O rei está nu! Contato: raymundo.netto@uol.com.br